*Antonio Marcos Moreiras
A Região Norte do Brasil é a maior do país em extensão territorial e a que concentra a maior biodiversidade, em virtude da Floresta Amazônica. Sua população é de mais de 18 milhões de habitantes. Manaus, no coração da região, tem mais de 2 milhões de habitantes, sendo a 7ª cidade mais populosa do país e a 6ª com maior PIB. A cidade tem um PIB per capita de mais de R$36 mil e um IDH de 0,737, números que indicam claramente que é desenvolvida e oferece boa qualidade de vida. Lá, existe ainda a Zona Franca de Manaus, um parque industrial com mais de 600 empresas.
Em contraponto a esse panorama de riqueza e desenvolvimento, Manaus, e toda a região Norte, carecem de infraestrutura e integração com o restante do país. Para se compreender melhor como essa deficiência afeta a Internet, pode-se observar o Mapa dos Sistemas Autônomos da Internet no Brasil. Ele representa as redes que a constituem, como provedores de conexão e aplicações e outras grandes redes, como universidades, grandes empresas e órgãos do governo. A região metropolitana de Manaus conta com 69 Sistemas Autônomos (AS). Curitiba e Belo Horizonte, cidades com população similar à de Manaus, contam com 136, e 234, respectivamente. O estado inteiro do Amazonas, conta com 90 AS, 20 vezes menos do que São Paulo.
Há apenas três rotas de fibras ópticas que interligam Manaus com o restante do país. Uma delas seguindo o Linhão de energia elétrica, em direção ao Pará, operada pela TIM e Vivo. Outra rota, via Porto Velho, operada pela Claro, e uma terceira via Roraima e seguindo até a Venezuela, operada pela Oi. Outras operadoras oferecem também serviços de conectividade na região, mas em algum trecho subcontratam invariavelmente uma dessas três infraestruturas. Todas sobrecarregadas, com preços altos e capacidade disponível exígua. Os provedores da região trabalham com capacidade de trânsito IP aquém de sua necessidade real e há muita dificuldade em se conseguir um aumento.
A infraestrutura de telecomunicações deficiente implica um represamento do tráfego da Internet. Manaus conta com um Ponto de Troca de Tráfego Internet, da iniciativa IX.br, do NIC.br, desde 2013. Até dezembro de 2020, o tráfego de pico não ultrapassava os 5 Gbps. Em Belo Horizonte e Curitiba, o número gira em torno dos 30 Gbps e 200Gbps, respectivamente. Dados dos últimos 6 meses do SIMET, o medidor de banda larga disponibilizado pelo NIC.br, mostram que as velocidades de download típicas do município de Manaus estão próximas aos 15,8Mbps, enquanto em Belo Horizonte e Curitiba são respectivamente 43,7Mbps e 50,4Mbps.
Há certamente necessidade de investimentos em infraestrutura de telecomunicações na Região Norte e, em particular, em Manaus, como a ampliação das rotas de fibras existentes. O Ministério das Comunicações trabalha, atualmente, com o Programa Amazônia Integrada e Sustentável (PAIS), que prevê a construção de novas infovias, com fibras ópticas subfluviais, bem como de redes metropolitanas para viabilizar o acesso. O programa é projetado para ser sustentável operacional e financeiramente, tendo o potencial de transformar completamente o panorama da região.
Embora a ampliação das redes de telecomunicações seja necessária, elas não são o único pilar sobre o qual a Internet se sustenta. Investimentos menores, feitos em outros pontos, de forma inteligente, cirúrgica, podem ajudar a aliviar a pressão existente nas infovias existentes, dando fôlego a elas e trazendo resultados muito positivos para a qualidade e custos da Internet, no curto prazo. Com esse objetivo, o NIC.br iniciou a operação do OpenCDN em Manaus, em dezembro de 2020.
Para entender o OpenCDN e o enorme potencial positivo da iniciativa, é preciso compreender duas infraestruturas importantes na Internet, distintas das redes de telecomunicações: o PTT, Ponto de Troca de Tráfego Internet, ou IX, Internet Exchange e a rede de distribuição de conteúdo, ou CDN, Content Distribution Network.
As redes que compõem a Internet precisam se comunicar, se integrar. É assim que a mágica de existir uma única grande rede global acontece. Os Internet Exchanges são plataformas que possibilitam a interligação física em uma topologia do tipo estrela, em um ou mais datacenters locais, das redes de uma mesma região. A existência de um PTT torna essa ligação direta entre muitas redes não apenas viável, como atrativa. Existe sempre um interesse de troca de tráfego local entre as redes. Isso é inerente à natureza da Internet. Por exemplo, o interesse de um cidadão manauara acessando os serviços do DETRAN, disponibilizados pela PRODAM. Ou de um profissional trabalhando em casa e conectado por um provedor, mas acessando via VPN a intranet da sua empresa, na Zona Franca de Manaus, que está conectada por outro provedor. O IX.br de Manaus facilita, do ponto de vista técnico, político e financeiro, a interligação direta das redes da região, contando com os datacenters da PRODAM, do PoP-AM da RNP e da Eyes NWhere como parceiros. Isso já é algo extremamente positivo, contudo, não só de tráfego local vivem os usuários.
Há conteúdos na Internet que são consumidos por muita gente, como por exemplo vídeos no YouTube ou no Netflix. Os mesmos vídeos são visualizados por muitos internautas: dezenas, centenas, milhares, quiçá milhões. Além disso, vídeos são conteúdos pesados, arquivos grandes, que exigem muita banda para serem transmitidos. Esses e outros tipos de conteúdos são normalmente distribuídos por meio de uma CDN. Seu princípio é simples: servidores locais guardam cópias dos conteúdos mais consumidos. O conteúdo é copiado quando o primeiro usuário faz a requisição e então, nas visualizações subsequentes ele já está ali e é servido localmente, não dependendo mais da infraestrutura de telecomunicações. Essa infraestrutura local pode ser instalada em um datacenter contratado pela própria empresa responsável pela CDN e, nesse caso, normalmente ela também é interligada ao IX mais próximo. Pode ser instalada também dentro dos datacenters de grandes provedores de conexão à Internet, para atendê-los exclusivamente, em uma colaboração onde o provedor entra com a hospedagem e trânsito IP e a CDN com seus servidores. Em ambos os casos, as empresas avaliam a questão sob o ponto de vista estratégico, técnico e financeiro. Nem sempre a presença regional de uma CDN é viável e, nesse caso, os provedores se veem obrigados a buscar seu conteúdo via trânsito IP, utilizando-se da infraestrutura de telecomunicações disponível.
Em Manaus, apesar do desenvolvimento da região e de já haver uma participação expressiva dos provedores regionais no IX da cidade, ainda assim o ambiente não se mostrou atrativo o suficiente, até o momento, para que as principais CDNs instalassem uma infraestrutura própria para atender de forma ampla os provedores e usuários da região.
O OpenCDN oferece uma infraestrutura compartilhada, interligada ao PTT de Manaus, onde as CDNs podem colocar seus servidores de cache, em um modelo similar ao que fariam para atender um único provedor. Os provedores participantes do IX, por sua vez, podem aderir também ao OpenCDN, compartilhando os custos dessa infraestrutura e tendo acesso direto aos caches e a seus conteúdos. É um modelo de compartilhamento de infraestrutura para provedores e para CDNs. Esse modelo torna mais atrativo para as CDNs, de um ponto de vista técnico e financeiro, instalarem sua infraestrutura na região.
Nos seus primeiros meses, o OpenCDN operou gratuitamente, com trânsito IP oferecido pela RNP, em caráter provisório, e usando o datacenter cedido sem custos pelas lojas Bemol, empresa da região que compreendeu o potencial positivo da iniciativa e decidiu contribuir. As CDNs do Google e da Globo aderiram, desde o início. Essa disposição para colaborar demonstra uma compreensão profunda do ecossistema da Internet, do qual essas organizações e muitos outros atores fazem parte. O tráfego no IX.br em Manaus, nesses poucos meses, já se multiplicou por 5, apresentando picos da ordem de 25Gbps em maio de 2021. É um resultado ainda tímido, porém expressivo, que já demonstra claramente os benefícios desta plataforma simples, mas extremamente importante, que é o OpenCDN.
O OpenCDN em Manaus continua sua operação após maio de 2021, ainda contando com a parceria das lojas Bemol, mas agora com trânsito IP contratado comercialmente e com capacidade suficiente para suportar novas CDNs. Há investimento financeiro do NIC.br e parte dos custos começam a ser compartilhados entre os participantes. O diálogo com novas CDNs segue aberto e bastante promissor.
O potencial de Manaus e de toda a região norte é enorme e o NIC.br reconhece isso. O IX.br e o OpenCDN incorporam o espírito que está por trás do funcionamento de toda a rede mundial: do trabalho coletivo e da colaboração técnica. Mesmo em mercados altamente competitivos, como o do provimento de acesso à Internet e o do provimento de serviços na rede, é possível e necessário compartilhar recursos de uma forma que seja vantajosa para todos. É um ganha-ganha possível, real, concreto, que vale tanto para as empresas responsáveis pela infraestrutura, quanto para os usuários. É assim que a Internet realmente funciona. Que cada vez mais empresas, provedores e outras instituições compreendam isso, como já fizeram as lojas Bemol, a Globo, o Google, a RNP, a PRODAM, a Eyes NWhere e todos os provedores e instituições participantes do IX.br e do OpenCDN em Manaus.
Antonio Marcos Moreiras
Engenheiro eletricista e mestre em engenharia pela Escola Politécnica da USP. Atualmente é gerente da equipe de projetos do Ceptro.br, Centro de Estudos e Projetos em Tecnologias de Redes e Operações do NIC.br, onde trabalha com iniciativas para fomentar o desenvolvimento da infraestrutura da Internet no Brasil, e seu uso.